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B Boas Práticas na Convivência com o Semiárido

Organização Comunitária
Cadernetas agroecológicas

Formação com mulheres apoiadas pelos Projetos FIDA para implementação do uso das cadernetas agroecológicas.

 

O que é?

Pelas relações de gênero estabelecidas na sociedade, culturalmente, o trabalho das mulheres tem menor valor que o trabalho desempenhado pelos homens. Isso também se reflete no trabalho realizado pelas mulheres na agricultura familiar, que é na maioria das vezes invisibilizado.

Por isso, para se ter uma visão mais completa da produção e renda da agricultura familiar e agroecológica, torna-se necessário questionarmos a forma de olhar o trabalho e a produção das mulheres. Pensando nisso, o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM), em parceria com o Movimento de Mulheres da Zona da Mata e Leste de Minas, com o objetivo de mensurar e dar visibilidade ao trabalho das agricultoras agroecológicas, cria o instrumento Caderneta Agroecológica, no ano de 2011.

As cadernetas levam em consideração que o ato de anotar a produção não é muito comum na agricultura familiar, menos ainda a produção das mulheres, e, para que as agricultoras passassem a registrar sua produção, teria que ser um instrumento necessariamente simples no qual a anotação fosse feita de forma rápida.

Vamos conhecer agora um pouco dessa experiência e como ela beneficiou diversas mulheres no semiárido nordestino, através do “Projeto de Formação e Disseminação do Uso Consciente das Cadernetas Agroecológicas nos Projetos Apoiados pelo FIDA no Brasil”.

 

Onde aconteceu?

A experiência das cadernetas agroecológicas junto aos projetos apoiados pelo FIDA no Brasil se desenvolveu a partir de junho de 2019 em parceria com os Projetos Dom Távora em Sergipe, Paulo Freire no Ceará, Dom Helder Câmara II em Alagoas, Ceará e Pernambuco, Projeto de Desenvolvimento Sustentável do Cariri, Seridó e Curimataú (Procase) na Paraíba, Projeto Viva o Semiárido no Piauí e Projeto Pró-Semiárido na Bahia.

Ao todo foram 111 municípios, onde foram sistematizadas as cadernetas de 879 mulheres nas 415 comunidades rurais envolvidas diretamente no processo, além de envolver suas famílias, equipe técnica e gestores/as dos projetos.

 

Como aconteceu?

Apresentada em formato de caderno, a Caderneta Agroecológica tem quatro colunas para organizar as informações sobre a produção das mulheres. Nela, registra-se cotidianamente o que foi vendido, doado, trocado e consumido, a partir de tudo o que é cultivado nos espaços de domínio das mulheres nas unidades produtivas da agricultura familiar e camponesa, desde a produção agropecuária ao artesanato e o beneficiamento.

Criada inicialmente em Minas Gerais, o seu uso foi sendo expandido para outras regiões do país. A Caderneta Agroecológica foi criada como um instrumento político-pedagógico de formação das mulheres, a princípio, com o objetivo de “empoderar” as mulheres a partir da visibilidade gerada e da tomada de consciência sobre a importância do trabalho delas próprias, tendo como ponto de partida a percepção destas sobre a importância da sua participação na produção e renda familiar, contribuindo, dessa forma, para a promoção da autonomia das mulheres. Mas, assim que apareceram os primeiros retornos das anotações, com resultados parciais surpreendentes para as mulheres e para a equipe do projeto, a Caderneta se revelou um eficiente instrumento de monitoramento da produção das mulheres, valorando a produção quase invisível delas para o autoconsumo, a troca, a doação e a venda.

 

Como Implementar?

Inspirado nos resultados desse processo nacional, o Programa Semear Internacional, em parceria com o CTA-ZM e o Grupo de Trabalho Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (GT Mulheres da ANA), propõe no ano de 2018 o “Projeto de Formação e Disseminação do Uso Consciente das Cadernetas Agroecológicas nos Projetos Apoiados pelo FIDA no Brasil”, com o objetivo de sistematizar a produção das mulheres agricultoras acompanhadas pelos projetos localizados no Semiárido brasileiro.

O processo de sistematização das Cadernetas Agroecológicas, promovido pelo Programa Semear Internacional, seguiu basicamente a mesma metodologia criada e testada a partir da experiência do GT Mulheres da ANA, com um diferencial que era contar com a contrapartida dos projetos para realização de seminários e/ou encontros estaduais e municipais, além do apoio do GT de equidade de gênero dos projetos FIDA no Brasil e por todo o trabalho de campo de aplicação dos Questionários Socioeconômicos e os Mapas da Sociobiodiversidade, de assessoramento, de formação das mulheres e de coleta de dados, todas essas ações de responsabilidade das equipes dos projetos.

A pesquisa se constituiu numa outra forma de olhar a agroecologia e o trabalho das mulheres, a partir da Caderneta Agroecológica, dando destaque à produção das mulheres que normalmente não é percebida ou valorizada pela família, mas que é fundamental para a economia do agroecossistema, jogando luz sobre o papel das mulheres como produtoras de alimentos e geradoras de renda, trazendo a reflexão para essas mulheres sobre a importância do trabalho delas na agricultura familiar e camponesa, e apresentando elementos para uma melhor relação de gênero na unidade familiar e nos processos de assistência técnica e extensão rural (ATER) realizado pelas organizações de assessoria.

Dando início ao processo, foi realizado na UFRPE em Recife, em junho de 2019, um seminário inicial com a participação de aproximadamente oitenta pessoas, entre técnicas(os), agricultoras e gestoras(es) dos projetos envolvidos, com os objetivos de:

  • apresentar e sensibilizar as organizações parceiras do Programa Semear Internacional sobre o “Projeto de Formação e Disseminação do uso Consciente das Cadernetas Agroecológicas nos Projetos apoiados pelo FIDA no Brasil”;
  • apresentar a metodologia de uso das Cadernetas Agroecológicas para os projetos e organizações parceiras;
  • discutir sobre a experiência da sistematização nacional das Cadernetas Agroecológicas e seus impactos na vida das mulheres participantes, bem como das equipes técnicas; apresentar e discutir a proposta de sistematização das Cadernetas Agroecológicas na região Nordeste do Brasil;
  • fortalecer um processo de formação em Gênero, Feminismo e Agroecologia junto a técnicos/técnicas das organizações parceiras do FIDA no Nordeste do Brasil;
  • aprofundar a discussão sobre a metodologia feminista na atuação e implementação dos projetos desenvolvidos em parceria com o Programa Semear Internacional;
  • fortalecer o GT Gênero dos projetos apoiados pelo FIDA para que este cumprisse o papel de monitoramento geral do processo.

Também foi criado o Guia Metodológico das Cadernetas Agroecológicas, elaborado em parceria com o Programa Semear Internacional e contém o passo a passo da metodologia.

O Guia contribui no entendimento comum de todas(os) as(os) técnicas(os) envolvidos no projeto, de quais são as etapas a serem seguidas para a pesquisa, com detalhamento da metodologia a ser adotada. Não se propõe uma receita única a ser seguida por todas as equipes, havendo liberdade para os projetos incluírem outros passos a partir das distintas vivências e realidades encontradas no território da pesquisa.

Vamos conhecer o passo a passo desse Guia:

Passo 1 – Sensibilização da equipe de assessoria técnica para a sistematização da produção das mulheres agricultoras;

Passo 2 – Capacitação das equipes de campo e sistematização;

Passo 3 – Sensibilização dos coletivos e organizações locais de mulheres para a sistematização da produção das mulheres rurais;

Passo 4 – Apresentação da metodologia da Caderneta Agroecológica;

Passo 5 – Distribuição das Cadernetas Agroecológicas e capacitação das mulheres rurais;

Passo 6 – Preenchimento das Cadernetas Agroecológicas;

Passo 7 – Animação para manter a anotação cotidiana das Cadernetas Agroecológicas (visitas técnicas, oficinas, trocas de experiências, etc);

Passo 8 – Coleta de dados das Cadernetas e tabulação dos dados;

Passo 9 – Aplicação e envio dos questionários;

Passo 10 – Aplicação da metodologia do Mapa da Sociobiodiversidade (as mulheres rurais devem fazer um desenho ou mapa da sua propriedade o mais detalhado possível, marcando-se onde homens e mulheres protagonizam o trabalho);

Passo 11 – Análise coletiva dos dados;

Passo 12 – Reflexão coletiva dos resultados;

Passo 13 – Rediscussão dos programas e ações das organizações a partir dos resultados da sistematização da produção das mulheres por meio das Cadernetas Agroecológicas.

Mulheres durante evento de formação sobre as cadernetas agroecológicas.

 

Após a formação, veio a prática.

Assim, todos os seis projetos apoiados pelo FIDA no Brasil iniciaram o processo de multiplicação, formação e uso das cadernetas com as agricultoras e equipe técnica.

Após essa implementação, houve um processo de pesquisa-ação com os seis projetos apoiados pelo FIDA no Brasil, onde foram coletados e analisados os resultados relacionados à produção e à contribuição econômica, ambiental e sociopolítica das mulheres e ao seu autorreconhecimento em relação ao valor de sua produção.

Mesmo com algumas limitações e dificuldades de manter a anotação das cadernetas, as mulheres se mostraram impressionadas com os resultados e motivadas com o exercício da anotação, a partir de uma nova visão adquirida sobre sua produção.

Segundo depoimento de Maria do Socorro Gomes de Lima, da Serra do Cipó no Ceará, pode se ter a dimensão de como o uso das cadernetas modificou a vida dessas mulheres rurais.

 “Meu desafio, é porque eu não tenho leitura. (…) Mas estou muito feliz de ter entrado nesse projeto, eu já até meu nome já sei fazer e já tô aprendendo a anotar minhas coisas tudo direitinho, eu não anoto muito bem, mas como eu anoto minhas coisas na caderneta, então eu faço do meu jeito. Olha, na primeira reunião da caderneta, eu ainda tava tomando remédio controlado. E depois desse projeto, eu parei de tomar os remédios, porque eu tirei toda besteira da cabeça. Porque agora eu fico cuidando de uma coisa cuido doutra. Aí por exemplo, quando passa o dia, eu me sento no alpendre, pego a caderneta e vou anotar tudo que eu consumi naquele dia, tudo que entrou, que saiu, que eu doei, que eu vendi, que troquei. Graças a Deus foi muito bom pra mim”, afirma.

A partir da pesquisa, concluiu-se que as Cadernetas Agroecológicas lançam luz sobre as atividades não monetárias realizadas pelas mulheres (como o consumo, a doação e a troca), considerando-as nas análises econômicas, ao mesmo tempo em que traz a reflexão para as mulheres agricultoras sobre sua produção e sobre o valor e a importância dela, permitindo mudanças no planejamento da produção e trazendo visibilidade, “empoderamento” e autonomia para as mulheres que usaram o instrumento.

 

O que mudou?

Os dados revelaram a importante produção das mulheres para a venda e o autoconsumo, bem como para a troca com a vizinhança e as doações para escolas, festas comunitárias, atividades religiosas, entre outros. Vejamos alguns desses dados obtidos a partir do uso das cadernetas e como elas trouxeram mudanças ao dia a dia das mulheres:

  • A sistematização das Cadernetas Agroecológicas tem ajudado a refletir sobre a produção e o trabalho das mulheres na agricultura familiar, sobre os tipos de produtos que elas produzem e o significado dessa produção para a ATER.
  • Segundo as equipes técnicas dos projetos, os dados sistematizados das Cadernetas apontam os desafios da produção; a importância do que é trocado e doado pelas mulheres, alimentando as relações de solidariedade nas comunidades; a importância da produção para o autoconsumo na manutenção da segurança alimentar e nutricional das famílias; a diversidade da composição da renda gerada pelas mulheres; e ainda traz visibilidade ao trabalho desenvolvido por elas.
  • A reflexão coletiva sobre os dados possibilita questionar o papel subordinado ao qual as mulheres da agricultura familiar estão submetidas e demonstra a importância de uma ATER inclusiva e comprometida com a realidade das mulheres para gerar impactos positivos na renda e na segurança alimentar das famílias.
  • O uso das cadernetas também fortaleceu a relação entre as mulheres, como afirma Sônia Maria da Costa, agricultora da comunidade Serra dos Morros, no Piauí: “As cadernetas fizeram a aproximação do grupo, nós somos 40 mulheres. Temos um grupo de ZAP, temos dialogado bastante, onde trocamos informações e tiramos dúvidas umas com as outras, ajudando no que a gente pode, mesmo de longe. Ela fez com que a gente se aproximasse bastante, nessa questão do diálogo e das conversas”.
  • A metodologia tem proporcionado que as mulheres agricultoras se encontrem nas comunidades ou em oficinas para trocar experiências, relatar o que está acontecendo com elas, ouvir umas às outras e chegarem juntas à solução de problemas, trazendo autonomia para elas e, algumas vezes, prescindindo do papel das técnicas de propor soluções para todos os problemas.
  • Os resultados do uso da metodologia das Cadernetas mostram, de forma prática, a relevância dos projetos incluírem ações que incentivem as relações de igualdade de gênero, fortalecendo as mulheres e sua contribuição na renda familiar, como também o reconhecimento delas como sujeitos políticos e econômicos.
  • Durante esse processo de implementação das cadernetas agroecológicas, a Bahia (Projeto Pró-Semiárido – PSA) foi o estado com mais cadernetas, 42% do total. As demais cadernetas estão distribuídas entre os outros estados e projetos da seguinte maneira: 6% (Procase), 9% (Dom Helder), 10% (Dom Távora), 15% (PVSA) e 16% (Paulo Freire). Por estado, foram 19 cadernetas no estado de PE, 28 em AL, 55 na PB, 92 em SE, 136 no PI, 179 no CE e 370 na BA. Como valor total produzido pelas 879 agricultoras ao longo dos seis meses, tem-se o equivalente a R$ 1.376.127,39.
  • A Caderneta Agroecológica também mostrou que dos quase R$ 1,4 milhões produzidos pelas agricultoras, mais de R$ 500 mil ou 41% do valor total da produção corresponde a relações socioeconômicas não monetárias (consumo, doação, troca).
  • A comercialização dos produtos é a representação monetária mais expressiva para todos os projetos. A menor proporção é do Projeto Paulo Freire, em que 51% dos registros correspondem à venda dos produtos, seguido do PVSA (58%), PSA (59%), Dom Távora (64%) e Dom Helder (65%). No caso do Procase, 75% do valor da produção foi referente a produtos vendidos, correspondendo à maior proporção entre os projetos.
  • Ao longo dos meses analisados, houve uma convergência do valor médio de produção associados aos projetos para o patamar de R$ 350,00 mensais. Algumas variações aconteceram, devido a alteração no número de agricultoras acompanhadas, entre outros fatores.
  • As cadernetas também mostram o papel das mulheres na garantia da segurança alimentar e nutricional. Os alimentos produzidos no espaço do quintal, auxiliam as famílias no que se refere ao processo de prevenção de doenças em função das práticas de autoconsumo, garantindo uma alimentação saudável.
  • A troca de alimentos, sementes e mudas entre as mulheres na comunidade, demonstram o desejo expresso por essas mulheres agricultoras, de “passar para frente” essa riqueza socioambiental nos seus territórios e contribuir para a promoção da segurança alimentar e nutricional de outras famílias. Na medida em que os quintais, em um dado território, sejam repletos de alimentos saudáveis e variados – representando todos os grupos e tipos de alimentos e, também, sendo emblemáticos das tradições culturais – é possível ter condições de alimentar e nutrir, de forma saudável, todas as famílias que moram ali, pensando além das fronteiras e muros que separam as casas para englobar a comunidade local e o território (que abarca comunidades próximas) na íntegra.
  • O uso de metodologias como a da Caderneta Agroecológica permitiu reconhecer e visibilizar o trabalho das mulheres e sua contribuição social e econômica para a reprodução da agricultura familiar e o cuidado com a vida.

Esse conjunto de dados mostra que as agricultoras protagonizam processos econômicos, ocupando-se de uma enorme quantidade de atividades. Produzem para o autoconsumo, realizam doações e trocas de sua produção e, ao mesmo tempo, buscam qualificar sua capacidade de organização produtiva e sua inserção em mercados. Protagonizam, portanto, uma intensa vida econômica, desconsiderada e desconhecida pelo senso comum, por agentes de Estado e formuladores/as de políticas públicas.

Desse modo, fica evidente que as estratégias de enfrentamento à pobreza no meio rural, como as executadas pelo FIDA, precisam incorporar ações afirmativas para a superação das desigualdades de gênero, especialmente para a construção da autonomia pessoal, política e econômica das mulheres.

 

Quem faz a experiência?

Essa é a experiência das cadernetas agroecológicas, desenvolvida pelos projetos apoiados pelo FIDA no Brasil.